Tuesday, October 29, 2013

Pássaros e luzes

Maria Ramos foi a coreógrafa escolhida para abrir a semana da dança no Teatro das Figuras. Esta criadora apresentou duas peças no dia 16 de Setembro: 7PM/Rumour e Nerves Like Nylon. A primeira coreografia, interpretada pela própria coreógrafa, tem como ponto de partida o poema de Margaret Atwood “Half Hanged Mary”, sobre uma mulher, Mary Webster, acusada de bruxaria por volta de 1680 que, mau grado ter sido enforcada, sobreviveu a essa violência, permanecendo viva por mais catorze anos. Esta reposição de Maria Ramos, que já havíamos tido o prazer de apreciar no CAPa em 2009, mantém a mesma força criativa. Segundo Maria Ramos, “integrando a linguagem física e a linguagem poética, procuro uma forma de esculpir o espaço cénico através do corpo de Mary”. E de facto, toda a composição é uma homenagem ao desenho do corpo no espaço. Maria Ramos assume um equilíbrio impressionante que nos remete para a macabra história inspiradora desta coreografia. O equilíbrio, a força que manteve Mary viva, esteve presente nesta relação simbiótica do corpo de Maria Ramos com a música de Nick Cave and the Bad Seeds e o espaço. A cenografia circunscrevia-se a um painel de papel pardo povoado de pássaros dispostos de uma forma aparentemente aleatória. No final, quando Mary assume o seu resgate da árvore que a prendia, liberta também os pássaros, incitando-os a voar numa direção diversa da sua prisão. E é um grande momento aquele em que Maria Ramos liberta os pássaros da sua prisão de papel, ao som da música explosiva de Nick Cave. Nesta coreografia Maria Ramos mostrou uma sensibilidade especial, que partilhou com o público, envolvendo-o num momento de êxtase explosivo. A segunda coreografia, Nerves Like Nylon, interpretada por Sofia Dias, Benedetta Maxia e Andresa Soares, assenta num conceito muito interessante, que reflete sobre certos paradoxos existentes na escultura. O escultor Antony Gormley descreve o seu trabalho como uma tentativa de materializar o espaço para além da aparência em que vivemos, tentando usar o corpo não como um objecto, mas como um lugar - um vestígio de um acontecimento real de uma pessoa num determinado tempo e local. A escultura como numa memória do que aconteceu, tal como uma fotografia. O espaço cénico, bem delimitado, com um desenho de luz de Vinny Jones apuradíssimo, impôs um olhar requintado à cena. Embora não seja original o conceito de encerrar os bailarinos dentro de quadrados de luz, a disposição triangular das dançarinas e o seu jogo inicial de brincar com a luz abriu a curiosidade ao espetador. No entanto, a execução das três bailarinas ficou aquém do conceito que suportou a coreografia. A proposta tinha a ver com uma movimentação meticulosa com base no tronco, estando as pernas em aparente imobilidade. Que foi apresentado esteve longe do domínio profissional que era esperado. Apresar das bailarinas terem como suporte um metrómono, os movimentos não foram sincronizados e houve bastantes falhas, bem como denúncias no olhar antes de iniciar uma nova série de sequências. Estas falhas destruíram a pureza do conceito original o que, tendo sido desenvolvido por bailarinas profissionais as torna indesculpáveis. Outra questão, não menos importante, teve a ver com o suporte literário dito pelas bailarinas. Independentemente das questões académicas que se interessam em saber se os bailarinos podem ou não tomar o uso da palavra, a grande questão é, se estão na posse da palavra, então ela tem de ser bem dita. Audível e entendível. Se há duas intérpretes portuguesas e uma italiana, que ainda por cima é especialista em tradução para a língua portuguesa, não se entende por que razão um texto defendido por criadores portugueses, em Portugal é dito em inglês, com uma pronúncia discutível. E aqui se levanta outra questão: se o texto é importante e assumido como um dos suportes da criação, então deverá ser entendido por todos os espectadores, o que não foi o caso, uma vez que na assistência se ouviam vozes perguntando: “o que é que elas estão a dizer?”. Por outro lado, se o texto não é importante, assumindo-se como uma meta linguagem, então porquê não assumir uma linguagem inventada cujos sons passem a fazer parte da coreografia? Se de facto o texto é para ser assumido na língua original, então que seja bem dito, bem articulado, e se providencie a uma tradução simultânea para quem não domina a língua. Esta coreografia, assente num conceito interessante e algo originou um produto pretensioso e sujo, o que se torna imperdoável quando se trabalha num nível de exigência profissional.

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