Tuesday, December 5, 2017
Com as vísceras na mão
Genet escreveu, Marco martins encenou, Beatriz Batarda, Sara Carinhas e Luisa Cruz deram corpo às paralvras.
No dia 2 de Dezembro o Cineteatro Louletano abriu as portas a um espectáculo que se transformou num vórtice intenso ao interior do sentir carnal.
Dentro de um pequeno quadrado de 3 metros por 3 as actrizes exploram de forma orgânica e quase alucinada a dialéctica do senhor e do escravo.
Figurinos neutros, munidas de um pau de giz, a imaginações a e força representativa constroem cenários, emoções, intenções.
Quando a senhora se ausenta começa o tempo das criadas. O tempo das extrapolações, das construções, dos ódios e das punições. Com um pequeno rebordo a toda a volta do espaço de representação onde foi colocado um espelho que reflete o público, em arena, as atrizes transpiram suor e verdade. Porque é de verdade e de autenticidade que este espectáculo exala. No suor, na saliva, no pano encharcado e imundo com que se limpa o rosto e o chão do palco.
Beatriz Batarda, Sara Carinhas e Luisa Cruz entregaram-nos autenticidade na interpretação do texto de Genet. O Genet crú, desapiedado e despojado. Limpas de artifícios, ofereceram-nos o Teatro. Obrigada!
Joana Craveiro guia-nos numa visita aos labirintos da memória
Dia 27 de outubro o cineteatro de Loulé recebeu a companhia Teatro do Vestido com o projeto Um mini Museu Vivo de Memórias do Portugal Recente, com encenação e interpretação de Joana Craveiro.
Confesso que, não fora a memória do trabalho de excelência de Joana Craveiro, a que tenho assistido desde o projeto Lugar Nenhum, não teria considerado deslocar-me a Loulé para assistir, uma vez mais, a um espectáculo sobre o 25 de Abril, com todos os condimentos utilizados na perspetiva de teatro “escolar”. Aceitei o convite e em boa hora fui, pois o que me foi dado ver, foi um dos mais conseguidos projetos de teatro a que eu assisti sobre a revolução de 74.
Joana Craveiro inicia o seu espectáculo no átrio do teatro, assumindo o paralelo da história da nossa revolução com a sua própria história, partilhando memórias e objetos pessoais. A história da gente comum para a qual, os capitães arriscaram a vida. Começamos por perceber a história de uma fotografia de Joana Craveiro em criança, tirada no fotógrafo, com os montes suíços por detrás, compondo uma cenografia muito ao gosto da época. Era o contraste de um país a preto e branco que manifestava a sua utopia sonhando com as cores de uma sociedade, que se acreditava, civilizada. Nesse momento Joana reproduz a pergunta feita ao seu pai, e que se irá tornar o mote do espectáculo: Quanto tempo é preciso passar para que se consiga falar, de uma forma objetiva, sobre uma revolução de mudou radicalmente a vida de um país? Joana partilha a gravação com o registo da voz do seu pai e o público pôde ouvir: um certo tempo.
O público é convidado a entrar integrado no espectáculo, como visitante privilegiado do percurso de vida e das memórias afetivas de Joana Craveiro. Somos, enquanto público participativo, conduzidos a lugares nos quais estão disponíveis pequenos blocos de apontamentos e lápis. Porque neste museu todas as palavras e todas as memórias contam. Como tal, deverão permanecer e contribuir para a história afetiva de um processo histórico que se mobilizou para a libertação de um povo.
No palco estão expostos, numa aparente confusão, diversos objetos, desde cartazes a fardas da mocidade portuguesa, aparelhos de rádio, giradiscos, livros, muitos livros, reproduções de paredes com inscrições de palavras de ordem que se ouviam na primeira metade da década de 70, bustos, fotografias... Um verdadeiro caleidoscópio de fragmentos que compõem as memórias da época que antecedeu a revolução e do seu período imediatamente posterior, conhecido por PREC (processo revolucionário em curso). O meu olhar subjetivo de espectadora que viveu o 25 de Abril com 10 anos focou-se nos cartazes que reconheci, nos aparelhos que também faziam parte do meu quotidiano, e na história, aparentemente banal, das crianças que naquele dia tinham ficado em casa observando os pais de ouvido colado à telefonia.
Foi a partir deste momento que o génio da actriz/encenadora Joana Craveiro se revelou, pois saltando o esperado percurso escolar, sem prejuízo do rigor histórico, Joana conduziu-nos num vórtice de emoções vividas em duas horas que, como espectadora, transformei em dois minutos. E estava lá tudo. Lá, no palco, na voz e no corpo de Joana Craveiro, nos objetos, na memória coletiva. Lá estava o país a preto e branco, o medo de ser mobilizado para uma guerra do outro lado do nosso mundo, o medo da prisão, o medo da tortura, o medo do exílio, o medo de viver. Lá também estava a emoção dos dias levantados, o poema de Sophia, a euforia dos tempos vividos após a revolução, a “Gaivota” cantada em coro pelo público, as reuniões plenárias onde, de repente, todos se juntavam na urgência de dizer e de fazer. E de contribuir para qualquer coisa que tinha de acontecer, mas que tinha se ser diferente.
Apesar do aparente caos apresentado no palco, Joana Craveiro seguiu uma linha coerente, servido-se de vários suportes (projeções de álbuns de fotografias, documentos, registos magnéticos) dando sentido ao produto final. E no final, munidos de cravos vermelhos, entretanto distribuídos, de panfletos lançados desejando “longa vida ao nosso líder Mao Tsé Tung”, o público, emocionado, aplaudiu efusivamente esta dádiva de recuperação da sua memória.
Joana Craveiro, sozinha em palco, mas acompanhada pelas memórias de um povo, levantou uma vez mais a questão inicial: quanto tempo é preciso deixar passar para se começar a falar objetivamente da revolução de Abril?
No debate final houve algumas achegas de espectadores, como a de um ex-combatente na guerra de África e que, recordando-se dos discos em vinil que enviavam para os soldados, com uma canção interpretada pela Hermínia Silva, desvendou o real uso de tão inusitada oferta: os soldados utilizavam os discos para jogarem, lançando-os entre eles. Dentro de algumas partilhas, umas convenientes, outras nem tanto, o museu continuou a abrir-se aos seus visitantes, incorporando as suas memórias e validando os seus testemunhos.
Em suma: Uma noite memorável. Obrigada, Joana Craveiro.
Tuesday, October 29, 2013
A origem do mal
E se, por alguma espécie de sortilégio todos nós fôssemos obrigados a revelar a nossa mais recôndita natureza? O resultado não iria certamente dar razão a Rousseau. Antes se traduziria num inominável pesadelo. Foi esta a imagem que Olga Roriz soube transmitir através do seu mais recente espetáculo denominado Pets. O espaço do quotidiano, com objetos que permanecem na nossa memória coletiva, torna-se caótico pela necessidade de domesticação de um ser humano por outro. No início do espetáculo uma mulher chama por um homem como se de um cão se tratasse. Assobia-lhe, faz-lhe gestos carinhos com a mão, tenta que ele se encoste à sua perna, como se estivesse dominado. Essa imagem, absurda, transmuta-se nos absurdos do quotidiano traduzidos na violência com que um ser se impõe a outro, com que um ser impõe uma certa dose de violência a si próprio, ao seu espaço, ao seu tempo. Há um momento de euforia em que os sapatos de salto alto, a imagem por excelência da feminilidade que exercem uma violência extrema no corpo da mulher são libertados da sua função castradora. Os objetos são destituídos das suas funções quotidianas, as caixas abrem-se espelhando o seu conteúdo nocivo, remontando a Pandora. Só que estas caixas, esvaziadas de todo o mal, deixaram escorrer a esperança por entre os interstícios da maldade. As caixas abriram-se e deixaram de esconder os mundos que devemos ocultar. Tudo se evidencia num jogo de perversidade, crueldade e demência posto a nu perante o olhar cúmplice dos seus semelhantes. Em qualquer tipo de relação, das mais íntimas às mais distantes, há uma noção de domínio que impera entre os seres. Entre o Homem e o seu espaço, percorrendo todos os recantos por explorar. Entre o Homem e o Tempo, tentando vencer a inexorável e inadiável ditadura dos anos mantendo-se em forma para permanecer mais jovem. Entre o Homem e os objetos, moldando-os à medida das suas necessidades. Entre o homem e o seu semelhante, tentando vencer nos debates, nos gostos, no corpo, nos afetos. E se existem cenas brutais como um homem que domina uma mulher, sufocando-a numa tina com água, outras existem, mais subtis, que não se tornam menos cruas. A solidão de um homem que sucumbe ao comércio do sexo ou a necessidade de se gritar bem alto a nossa tristeza sem que ninguém nos ouça realmente pode colocar o ser humano abaixo de um limiar de compaixão partilhado por outros mamíferos. Pets, interpretado por Cristina Câmara, Maria Cerveira, Marta Lobato Faria, Bruno Alexandre e Pedro Santiago Cal exterioriza os alter-egos libertando-nos do socialmente correto, ao som de um suporte musical de excelência. Como afirma a produção deste espetáculo: “Pets é um espetáculo onde nos propomos observar o inatingível. O privado e o público. O quotidiano, a rotina e os hábitos. O silêncio e a solidão. Os lugares apertados. O espaço sem espaço. A acumulação de detritos. A reciclagem dos afetos, dos objetos dos sentidos. A azáfama e a inércia reciclada. As pequenas palavras. A procura dos nomes. As presas e as surpresas. Os jogos de poderes. A sedução. O desejo. O domador e o domesticado. As funções e disfunções. A dependência. Reações e confusões. A vivência possível. A ironia de uma partilha forçada. A falsa privacidade. O engano. O acaso. Brincar como se fosse ao acaso. Homens e mulheres afeiçoados por si próprios. Auto domesticados. Selvagens. Um espaço interior com paredes, portas e janelas imaginárias. A luz é apenas uma memória. O som da cidade dissipou-se no tempo. A clausura torna-se real.” E foi sobre esta clausura real que se consubstancia no domínio de um ser sobre si próprio que incidiu o espetáculo de Olga Roriz. E foi com o peso da última personagem, sobre a qual o home ia colocando toda a espécie de objetos, conduzindo-a com uma trela, que os espetadores saíram do teatro. Um soco no estômago das más consciências que suportam todo o tecido social. Um retrato brilhante das relações humanas na contemporaneidade.
Um Hamlet de mente aberta
Contrariando o seu nome a Associação Ar Quente ofereceu uma lufada de ar fresco a quem assistiu à sua última produção. Open Hamlet foi uma agradável surpresa no panorama teatral algarvio. Pela irreverência, pela ousadia, pela excelência do trabalho de encenação de João Garcia Miguel. Segundo a produção, “Hamlet tem tanto de aterrador como de desconcertante: a velocidade do seu pensamento, sensível em extremo e demolidor na forma como baralha e aniquila aqueles que o pretendem enganar ou apenas aproximar-se dele; os jogos existenciais, que o levam a fingir-se de louco, de forma a testar os seus limites e a provocar o engano dos outros que o vigiam; os constantes solilóquios acerca das suas experiências e contradições pessoais; a crueldade para com Ofélia, para consigo mesmo e para com todos os que o procuram apaziguar; a sua teimosia e honestidade roçam a ingenuidade e a bestialidade e terminam em tragédia pessoal e colectiva.” Para fazer juz a esta linha de pensamento a encenação procurou, dentro de algum caos aparente, uma linha dramatúrgica fracturante, por vezes quase Brechteana, que obriga o público a interrogar-se sobre a sua função na vida.
O público entra na sala e é disposto em arena, sendo a frente de palco cada uma das faces do quadrado. Aquilo que ressalta à vista é a plasticidade do cenário: uns blocos cilíndricos em papel, quais tarolos de madeira, dividindo o espaço numa diagonal. Uma diagonal que desde logo separa o cunho psicológico das personagens. Hamlet e a sua mãe, Hamlet e o seu tio-padrasto Cláudio, Hamlet e Ofélia, Hamlet e o resto do mundo.
Os figurinos, exóticos e insólitos, apontam para a ambiguidade das personagens. Hamlet é uma personagem do universo Shakespeareano, mas é também um ser com idiossincrasias comuns ao homem do séc. XXI. Os folhos que no séc. XVI enfeitavam o pescoço, o punho da camisa, descem nas personagens masculinas, interpretadas por Gil Silva e Ricardo Mendonça, formando uma saia que aponta para um esbater do género na assunção desses sentimentos. Por outro lado, a personagem feminina, interpretada por Teresa da Silva, é quase desprovida de ornamentos no figurino, uma transparência que se adequa à sua personalidade, à excepção da sua cabeça, enfeitada com um excêntrico penteado, onde se colocaram as flores características de Ofélia. Um pormenor no figurino de Ricardo Mendonça, para além do casaco aos losangos brancos e pretos, lembrando os salões do séc XVI e toda a simetria palaciana a preto e branco, é o contraste com a máscara assumida pelo actor de Groucho Marx. Hamlet, com o seu sentir trágico perante a existência, contrasta com o cómico do séc. XX que, curiosamente, assumia num dos seus textos cómicos mais assinaláveis, nunca aceitar ser membro de um clube que o aceitasse como seu membro. Esta aparente contradição pode ser uma alegoria da vida de Hamlet, pois o jovem príncipe da Dinamarca viveu toda a sua vida numa corte que, após a morte do rei seu pai, teve dificuldade em aceitá-lo como seu legítimo herdeiro. Muito interessante a irónica identificação encontrada entra a figura de Shakespeare e Fernando Pessoa. No espectáculo apresentou-se uma semelhança física mas a identidade procurada vai muito para além dessa parecença forçada. A identidade repousa no encontro de dois dos maiores vultos da literatura mundial que recriaram como ninguém este ser que se desliga de si mesmo e busca uma outra identidade que não a sua.
Ofélia, protagonizada por Teresa da Silva, interpretou de maneira assinalável a dor de um amor não correspondido e a procura de uma identidade entre a actriz e a personagem. Senhora de uma voz notável ao nível do bel canto, Teresa da Silva presenteou o público com uma área operática. Mostrou uma personalidade afectada pela dor da perda ao colocar obsessivamente as ameias das muralhas à mesma distância entre si. Tal como colhia as flores silvestres, para fazer o colar, Ofélia construiu a muralha que a separou do mundo onde habitava o seu ideal romântico. Não seguiu para o convento, como Hamlet lhe ordenou, mas refugiou-se nos muros de nada da sua própria solidão e do seu próprio desgosto. Uma chamada de atenção para os muros que erguemos entre nós e os outros. Entre nós e as palavras. Daí o convite das personagens para o público os acompanhar numa coreografia, daí o convite para cada elemento do público pegar num cilindro que simbolizava a ameia dos castelos que erguemos à nossa volta e irromper pela cena adentro, lendo em uníssono o belíssimo poema de Mário Cesariny, You are welcome to Elsinore. O espectáculo termina com um momento belíssimo, com o público dentro do espaço de representação, partilhando com os actores as palavras do poetas: “Entre nós e as palavras, os emparedados /entre nós e as palavras, o nosso dever falar.” De assinalar o excelente jogo de luz, de som, e o trabalho de actor de Gil Silva, desocultando um inesquecível Hamlet.
Pássaros e luzes
Maria Ramos foi a coreógrafa escolhida para abrir a semana da dança no Teatro das Figuras. Esta criadora apresentou duas peças no dia 16 de Setembro: 7PM/Rumour e Nerves Like Nylon. A primeira coreografia, interpretada pela própria coreógrafa, tem como ponto de partida o poema de Margaret Atwood “Half Hanged Mary”, sobre uma mulher, Mary Webster, acusada de bruxaria por volta de 1680 que, mau grado ter sido enforcada, sobreviveu a essa violência, permanecendo viva por mais catorze anos. Esta reposição de Maria Ramos, que já havíamos tido o prazer de apreciar no CAPa em 2009, mantém a mesma força criativa. Segundo Maria Ramos, “integrando a linguagem física e a linguagem poética, procuro uma forma de esculpir o espaço cénico através do corpo de Mary”. E de facto, toda a composição é uma homenagem ao desenho do corpo no espaço. Maria Ramos assume um equilíbrio impressionante que nos remete para a macabra história inspiradora desta coreografia. O equilíbrio, a força que manteve Mary viva, esteve presente nesta relação simbiótica do corpo de Maria Ramos com a música de Nick Cave and the Bad Seeds e o espaço. A cenografia circunscrevia-se a um painel de papel pardo povoado de pássaros dispostos de uma forma aparentemente aleatória. No final, quando Mary assume o seu resgate da árvore que a prendia, liberta também os pássaros, incitando-os a voar numa direção diversa da sua prisão. E é um grande momento aquele em que Maria Ramos liberta os pássaros da sua prisão de papel, ao som da música explosiva de Nick Cave. Nesta coreografia Maria Ramos mostrou uma sensibilidade especial, que partilhou com o público, envolvendo-o num momento de êxtase explosivo.
A segunda coreografia, Nerves Like Nylon, interpretada por Sofia Dias, Benedetta Maxia e Andresa Soares, assenta num conceito muito interessante, que reflete sobre certos paradoxos existentes na escultura. O escultor Antony Gormley descreve o seu trabalho como uma tentativa de materializar o espaço para além da aparência em que vivemos, tentando usar o corpo não como um objecto, mas como um lugar - um vestígio de um acontecimento real de uma pessoa num determinado tempo e local. A escultura como numa memória do que aconteceu, tal como uma fotografia. O espaço cénico, bem delimitado, com um desenho de luz de Vinny Jones apuradíssimo, impôs um olhar requintado à cena. Embora não seja original o conceito de encerrar os bailarinos dentro de quadrados de luz, a disposição triangular das dançarinas e o seu jogo inicial de brincar com a luz abriu a curiosidade ao espetador. No entanto, a execução das três bailarinas ficou aquém do conceito que suportou a coreografia. A proposta tinha a ver com uma movimentação meticulosa com base no tronco, estando as pernas em aparente imobilidade. Que foi apresentado esteve longe do domínio profissional que era esperado. Apresar das bailarinas terem como suporte um metrómono, os movimentos não foram sincronizados e houve bastantes falhas, bem como denúncias no olhar antes de iniciar uma nova série de sequências. Estas falhas destruíram a pureza do conceito original o que, tendo sido desenvolvido por bailarinas profissionais as torna indesculpáveis. Outra questão, não menos importante, teve a ver com o suporte literário dito pelas bailarinas. Independentemente das questões académicas que se interessam em saber se os bailarinos podem ou não tomar o uso da palavra, a grande questão é, se estão na posse da palavra, então ela tem de ser bem dita. Audível e entendível. Se há duas intérpretes portuguesas e uma italiana, que ainda por cima é especialista em tradução para a língua portuguesa, não se entende por que razão um texto defendido por criadores portugueses, em Portugal é dito em inglês, com uma pronúncia discutível. E aqui se levanta outra questão: se o texto é importante e assumido como um dos suportes da criação, então deverá ser entendido por todos os espectadores, o que não foi o caso, uma vez que na assistência se ouviam vozes perguntando: “o que é que elas estão a dizer?”. Por outro lado, se o texto não é importante, assumindo-se como uma meta linguagem, então porquê não assumir uma linguagem inventada cujos sons passem a fazer parte da coreografia? Se de facto o texto é para ser assumido na língua original, então que seja bem dito, bem articulado, e se providencie a uma tradução simultânea para quem não domina a língua. Esta coreografia, assente num conceito interessante e algo originou um produto pretensioso e sujo, o que se torna imperdoável quando se trabalha num nível de exigência profissional.
Sunday, July 1, 2012
O Aqui
Uma tela horizontal marca o palco do Teatro das Figuras. Um pano que corre de um lado ao outro do palco, ocultando, desocultando. Uma projecção de imagens subaquáticas conduz-nos a um universo distante, quase paralelo, dentro do qual os sentidos captam o real de forma diferente. Ouve-se o som de um coração a bater e a voz da Natália Luiza a falar-nos sobre o Tempo. A noção de tempo que acelera e desacelera de acordo com o olhar de cada um perante o mundo. O seu mundo. O pano corre e desoculta-nos imagens de pessoas que estão fixas numa posição. O pano volta a fechar, volta a abrir e as posições mudam, como se fossem instantâneos captados num instante em que se segura o Tempo. Num momento todos podemos ser iguais. No instante seguinte há formas diferentes de gerir o Tempo. E foi a partir da gestão dessa diferença que surgiu o espectáculo O Aqui, coreografado por Ana Rita Barata, que teve o apoio de uma excelente equipa de criadores que contém Natália Luíza na dramaturgia, Pedro Sena Nunes na direcção artística e imagem e João Gil na criação da música original.
O projecto da Companhia Integrada Multidisciplinar pretendeu criar um objecto artístico integrador com pessoas que sofrem diariamente do estigma da diferença e não fazer uma espécie de terapia através da dança. O resultado foi um espectáculo surpreendente e comovedor no qual os rimos dos diferentes intervenientes se adaptavam e criavam partituras coreográficas muito interessantes, com assinalável qualidade ao nível do movimento. A música, criada por João Gil, dava conta das mudanças de ritmo entre as situações e as personagens entre si, de forma harmoniosa e singular. O desenho de luz de Cristina Piedade soube criar uma atmosfera intimista que convida à partilha e à alegria de viver. Ao dançar a coreografia de Ana Rita Barata os intervenientes perdem o medo. O medo de não ter tempo, o medo de não conseguir enfrentar uma realidade que se tornou dolorosa. No espectáculo a dor deu lugar ao riso e ao movimento descontraído dos corpos que executaram composições a solo, a dois, em grupo, absolutamente notáveis. As cadeiras de rodas deslizavam pelo palco ou com pessoas a ocuparem um lugar em diversas posições. Todos os corpos se moviam, quer fosse por si, quer fosse por meio de um impulso exterior que lhes provocava uma capacidade motora que por vezes não possuíam de forma autónoma.
No final o espectáculo foi comovente e belo, promovendo uma miríade de sentimentos. Houve uma unidade na imensa diversidade de pessoas, objectos, tempos, ritmos, afectos, diálogos.
Composta por 13 pessoas, quatro bailarinos profissionais, dois técnicos da área da deficiência e sete pessoas portadoras de paralisia cerebral, a companhia tem recebido apoios do Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian (CPRCCG), da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL) e do Instituto de Inserção Social. Os bailarinos profissionais são António Cabrita, Carolina Ramos, Catarina Gonçalves e Pedro Ramos, os técnicos são António Paiva e Carolina Santos e os intérpretes da APCL e CRPCCG são Adelaide Oliveira, Jorge Granadas, José Marques, Maria João Pereira, Paulo Benavente, Sílvia Pedroso, Yete Borges e Zaida Pugliese.
Para a criação deste espectáculo, houve uma co-produção com o Teatro Municipal de São Luiz, a Vo´arte e com a co-apresentação do Teatro Camões.
O desafio maior foi conseguido. Neste espectáculo os intérpretes foram sentidos pelo público como artistas que se expressaram através de um suporte artístico, de um corpo, apresentando-o num espectáculo, apagando a imagem do portador de deficiência. Este equilíbrio é fruto de uma capacidade artística e de uma sensibilidade notável. Reflexivo e divertido, comovente e belo. Um prazer que inunda os sentidos e obriga a pensar.
Um Mozart de chocolate
E se num espetáculo de ópera os cantores interpretassem as suas árias, representassem o seu papel e ainda mimassem o seu público oferecendo-lhe comida? O público pôde encontrar esse tipo de interação na companhia Laika, que se destaca na cena artística com a criação de um Teatro dos Sentidos. Nos dias 8, 9 e 10 de Junho os claustros da escola hoteleira em Faro lotaram os lugares previstos para receberem o espetáculo Ópera Buffa que aliou uma ópera criada a partir da obra Dom Giovanni, de Mozart tocada ao vivo, com teatro e culinária. O público foi convidado a sentar-se em mesas corridas de madeira que se constituíam como plataformas desniveladas, possibilitando a passagem dos atores/cantores por cima delas ao longo do espetáculo. Com a participação da Orquestra do Algarve, os cantores apresentaram-se assumindo o chefe de cozinha a identidade de D. Giovanni, o famoso sedutor. D. Giovanni seduz a bela e inocente Zerlina, que sucumbe aos seus encantos, mau grado os sentimentos de Masetto, o seu eterno apaixonado. Os atores/cantores começam por servir aos convidados uma bebida à base de gengibre, limão e menta. A distribuição dos pratos, dos copos, dos jarros está cuidadosamente encenada de forma divertida mas rigorosa. Nem um dos convidados fica sem talher, nem uma das mesas fica sem todos os apetrechos. O público colabora e vai degustando alegremente o que lhe é dado ao longo do espetáculo. Depois da bebida rosada e apetitosa os cozinheiros preparam o estômago dos espectadores com um caldo de castanha polvilhado com amêndoa ralada. Por esta altura uma das primeiras raparigas seduzidas por Giovanni, Elvira, surge enfrentando com fúria o abandono do incorrigível sedutor. Elvira confronta Giovanni e nessa discussão as messas servem de estrados aos seis cantores que se posicionam em várias alturas, dando uma outra dimensão a uma das áreas da conhecida ópera de Mozart. O público tem de afastar os pratos, os copos, os jarros com a bebida, sob pena da fúria de Elvira deitar abaixo um copo mais incauto. Ao longo da ópera o público ia sendo servido pelos cantores, que surgiam dos mais inimagináveis lugares. Um risotto de legumes foi o prato principal, ao qual se seguiram profiteroles regados com chocolate. Para o molho de chocolate as cantoras provocaram o apetite dos espectadores com um ritual no qual se derretia o busto do infame sedutor, feito de chocolate, para um depósito. O chocolate líquido tornou-se o elemento comum desta refeição comungada pelo público. A cabeça de Dom Giovanni tornou-se num deleite para os sentidos de todos, percebendo-se finalmente a razão pela qual ela afirmava não poder ser fiel a uma única mulher sob pena de estar a trair todas as outras que o desejavam.
O espetáculo da companhia Laika, dirigido por Peter De Biee e Jo Roets cumpriu as expectativas, pois completou os prazeres dos olhos e dos ouvidos com um presente ao palato, culminando no chocolate, símbolo do desejo que se degusta e lambuza com prazer. O público aplaudiu entusiasticamente os músicos, os atores, os cantores e os cozinheiros pois, cada um na sua especificidade contribuiu para que o espetáculo enchesse de gozo artístico os sentidos. De facto, como prometido este espetáculo foi uma sumptuosa mistura de música, canto, teatro e chocolate. Uma palavra também de apreço e louvor aos alunos formandos da Escola Hoteleira do Algarve que, tendo confecionado toda a culinária do espetáculo, contribuíram para este caleidoscópio de prazeres.
Este foi mais um dos espetáculos da rede Movimenta-te que pretende estabelecer uma rede entre os municípios de Faro, Olhão, Loulé, S. Brás e Tavira, como lugar crucial de encontros e fonte de criação artística.
Subscribe to:
Posts (Atom)